Comemorar e celebrar são dimensões simbólicas importantes nas diferentes culturas. Envolvem afetos, naturalmente, mas além deles significam assinalar marcos, utilizar a coletivamente a memória e sobretudo traduzir valores.
No caso de Alberto Costa e Silva esses valores se espraiam e dão consistência e ânimo vital à existência plural do diplomata, do acadêmico, do intelectual.
O diplomata circulou por diferentes sociedades e atuou nas relações entre Estados e em organismos multilaterais, recolhendo experiências, compreendendo vivências, expressando em nuances, atos jurídicos, filigranas e protocolos interesses e perspectivas oficiais do Brasil. Para entender as sociedades, muniu-se de muita história, antropologia e...sensibilidade; para operar nos escaninhos diplomáticos, de muito pragmatismo, distante do maquiavelismo e do idealismo, embora atento a seus desdobramentos, como observador cuidadoso da diplomacia renascentista, berço de toda diplomacia.
O acadêmico participa de muitas societés savantes, consciente de que a contrapartida ao reconhecimento que emprestam é a exigência da ativa participação, pois tanto as instituições dignificam os homens quanto estes as devem manter vivas e significativas. Daí flui seu espírito colaborativo, jamais negado, ciente de que a vida das agremiações consiste numa combinação de seiva criativa e atuação concreta de seus membros. É a simbiose homem-academia, que surgiu em várias culturas, mas que na ocidental se esboçou a partir do Renascimento italiano, que Alberto tão bem encarna nas casas de que faz parte.
O intelectual? Esse é o plural da pluralidade. Poeta, historiador, memorialista, ensaísta, lapidador cuidadoso de antologias... Tudo expressado numa dicção sensível isonômica, deliciosa, a que não faltam firmeza e contundência quando julgadas necessárias, como na defesa da forma portuguesa dos gentílicos e onomásticos, numa época em que pululam os Beijings, Firenze e Marseille. Ou ainda na condenação das diferentes formas da escravidão, em nome de um ideal humanista ou muito simplesmente do reconhecimento da equânime humanidade do ser humano.
Tudo isso faz de Alberto também um intelectual renascentista, um Montaigne apenas meio cético, que não se limita à sua torre-biblioteca, pois circula pelo mundo. Dessa circulação e das incontáveis leituras nasceram um sábio renascentista, como o chamei – tenho certeza que acertadamente - em meu ingresso na Academia Brasileira de Letras, quando fui por ele recebido com a generosidade de sempre.
Alberto, intelectual, faz muito, e faz bem feito. O memorialista é sensível e sagaz, porque sabe que “um bom memorialista guarda o tempo; não o perde” embora tenha “o pudor de exibir por inteiro a sua recolha de dias felizes”, como disse da autobiografia de Carlos Chagas Filho e nós podemos dizer da dele. O ensaísta é percuciente e nos coloca ante Guimarães Rosa e Castro Alves em corpo e alma. O antologista realiza com ciência a arte difícil da seleção. Suas imagens da África, de Herodoto ao século XX são, como o continente, ricas, diversificadas e complexas. Os títulos de seus livros – uma arte em si – podem ser dialéticos como os de Gilberto Freire em “A enxada e a lança”, autoexplicativos como “A manilha e o libambo”, analógicos e algo irônicos como “Espelho do Príncipe”, de fino artesanato, como “A invenção do desenho” ou “Das mãos do oleiro” ou ainda trabalhados com analogia sutil, no caso de “Um rio chamado Atlântico”, a propósito da senda comum às três culturas – a portuguesa, a brasileira e a africana.
O poeta e o historiador em Alberto são admirados e recorrentemente premiados, com o Juca Pato, os Jabutis e o Camões. O domínio da língua, a clareza do pensamento e a expressão da sensibilidade aparecem em ambos. Percebe-se, entretanto a distinção básica feita na Poética aristotélica e que nem os tempos sofistas nem os pós-modernos conseguiram elidir: “um [o historiador] escreveu o que aconteceu e o outro [o poeta] o que poderia ter acontecido”. A categoria do poeta, diz o filósofo, é o universal, a do historiador, o particular. O universal do poeta Alberto da Costa e Silva surgiu primeiro e foi uma constante de vida. O particular do historiador encontrou-se na África, como forma de melhor compreender o Brasil.
Questionando Trevor Roper e tantos outros historiadores e antropólogos, além do patriarca Hegel, Alberto está convicto que sim, a história da África sul saariana existe e pode ser feita, com as fontes arqueológicas e com os documentos produzidos por africanos e europeus. Por seus trabalhos inseriu-se vitoriosamente no mundo acadêmico internacional dos africanistas, tornando-se, no Brasil, o maior deles.
Estudando a história da África na multiplicidade de culturas, realizações e tempos, mostrou uma realidade que continua sendo toldada pelo eurocentrismo, pelo islamocentrismo e por quantas atitudes auto referenciadas ignoram – ou pior, para um humanista como ele, condenam – a diversidade.
A motivação do estudo da África explica-se em Alberto, por outra ainda maior, a contínua tentativa de compreender o Brasil. A presença do negro na forma predominante, embora não exclusiva, da escravização e o processo pelo qual se fez presente em todas as facetas da vida brasileira, o estimularam a buscar suas raízes e identidades. Perguntando ao africano escravizado como gostaria de ser lembrado pelos brasileiros de hoje, ele responde:
“Creio que gostaria que dele não esquecêssemos o exílio forçado, a humilhação e o sofrimento, mas que também lembrássemos a criatividade com que se deu a uma terra que logo fez sua, ocupou com seu trabalho e encharcou de beleza.”
Uma grande lição, que não esquece a tragédia, mas destaca a contribuição ímpar e aponta para a esperança de um país mais homogêneo e menos desigual.
Realizado como diplomata, poeta e historiador, tornando-se com naturalidade aquele sábio renascentista, Alberto da Costa e Silva realizou – e presumo que o fez intencional e devotadamente - o vaticínio de seu pai, o poeta Da Costa e Silva, que ele fez questão de lembrar no introito do discurso de posse na ABL:
“Reflori em teu ser que meu sangue revela
Para viver em ti uma vida mais bela
O sol te acenará dos longes horizontes
E eu hei de despontar onde quer que despontes
E contigo serei tudo o que sonhei ser
Redivivo e imortal no esplendor de teu ser”
Alberto da Costa e Silva cumpriu o destino assim traçado, para benefício de todos nós, que o admiramos, e do Brasil.