O livro recém-lançado de José Luiz Alquéres, Uma crônica da ciência no Ocidente, por trás do título despretensioso e aparentemente didático, possui motivações profundas e identifica desafios inquietantes.
A proposta é a da reunião da ciência e do humanismo numa visão integrada e totalizante, ou holística, como prefere o autor. Parte das realizações da ciência no Ocidente, seus avatares nas diferentes culturas e a necessidade de uma leitura humanista dos resultados na contemporaneidade. É perspectiva otimista do que até agora se obteve em matéria de desvelamento da natureza e do homem, o que muitas vezes autores que se propuseram a enfrentar temas semelhantes não conseguiram, resvalando para condenações e jeremiadas. Perspectiva otimista, mas não ingênua, pois o equacionamento do problema e o encaminhamento das demonstrações – não fosse o autor engenheiro de formação – se faz de modo estruturado e consistente.
As principais teses estão desde o início da obra claramente enunciadas. A visão holística que propõe, objetivando articular ciência e humanismo, também tem como pré-requisito superar a própria fragmentação do conhecimento científico em especialidades cada vez mais minudentes. A constatação, no século XX, a partir da física, da existência de realidades e padrões de observação não restritas à perspectiva newtoniana, aquela “gloriosa física do Ocidente” a que Ortega y Gasset se referiu com alguma ironia, foi revolucionária: a teoria da relatividade, a física quântica e o princípio do indeterminismo mudaram a vida humana, na teoria e na prática. Tanto quanto Copérnico revolucionou a concepção ptolomaica do Universo, Einstein, Planck e Heisenberg mudaram as certezas que o cientificismo, e particularmente o positivismo, haviam fundamentado em Newton. Com a vantagem, para a ciência, que não eliminaram sua contribuição, mas apenas a relativizaram, confinando-a a um recorte do Universo e mostrando deste outras virtualidades. Essas constatações aparecem na parte da obra a que o autor denominou “crônica”.
Tais concepções viabilizaram, assim, uma visão integradora da própria ciência e abriram a possibilidade de uma relação não determinista com as ciências do homem, a arte e a filosofia – desde logo admitindo, penso eu, o argumento de Popper contra os eventuais excessos do holismo.
A partir da evolução histórica da ciência, Alquéres identifica três desafios maiores para a humanidade, todos de características eminentemente sociais e não científicas: a existência da fome afetando largos setores da sociedade e paradoxalmente um consumismo predatório destruidor do ambiente; a vulnerabilidade de todas as populações às pandemias; e a sombra da ameaça atômica, seja por estados, seja por grupos terroristas.
Para o autor, a magnitude dos três desafios está na possibilidade de destruição total da espécie e, entre outras perguntas, questiona: como a ciência, as instituições sociais e os indivíduos podem evitar a catástrofe climática que se anuncia, de consequências terríveis para a humanidade?
A grandeza dos problemas, que acaba se reduzindo a um só – como evitar a destruição da espécie e/ou do planeta? – impõe segundo sua argumentação a estreita relação entre a ciência e a ética. Nas suas palavras, envolve não apenas “respeitar um código”, mas ser “verdadeiramente íntegro”. Algo que nos faz recordar o Kant da Crítica da razão prática, quando destaca a ordem moral interna nos homens, que dispensaria a coerção da lei para orientar o comportamento humano.
No epílogo do livro, “A sustentabilidade é um humanismo”, chama a atenção para a tese do cientista James Lovelock, da Teoria de Gaia e sua “metáfora da Terra não como um mecanismo newtoniano, mas como um organismo vivo”, perspectiva que encaminha sua resposta ao desafio climático e complementa a tese central da junção holística da ciência com a ética. Preocupação que também já fora manifestada em 1973 por Arnold Toynbee, em mais uma de suas arrojadas e discutidas incursões filosóficas pela história, ao afirmar que a biosfera (termo que emprestou a Teillard de Chardin) era “estritamente limitada em seu volume e... contém um estoque também limitado de recursos que sustentam os seres vivos”. E conclui seu livro – há cinquenta anos - perguntando: “assassinará a humanidade a Mãe Terra ou a redimirá?”
Por suas qualidades intrínsecas e intensa atualidade, o livro de Alquéres suscita no leitor muitas reflexões.
Desde logo, sobre o ineditismo dos desafios. Embora sociedades e povos inteiros tenham sido seriamente ameaçados em sua existência, e até efetivamente extintos, jamais isso se deu na escala de toda a espécie, como agora.
Igualmente sobre a capacidade humana para enfrentar os desafios. Não pelo recurso à ciência de estilo positivista, compartimentada em nichos metodológicos e determinista, mas na percepção holista como a descreve o autor. Que, aliás, lembra o Tolstoi da terceira parte de Guerra e Paz, quando afirma que “a mais alta sabedoria tem apenas uma ciência – a ciência do todo – a ciência explicando toda a criação e o lugar, nela, do homem.” Se pensarmos na multiplicidade dos níveis da realidade a partir das descobertas da física do século XX – do infinitamente grande einsteiniano ao infinitamente pequeno quântico – sem esquecer que a perspectiva newtoniana continua válida em seu nível e que ainda precisamos lidar com o acaso indeterminista, não é irrazoável concluir pela unidade do todo, desde que admitamos que ela envolve diferentes – infinitos? – níveis da realidade, que pretendemos traduzir em diferentes graus de percepção com nosso instrumental cognitivo.
Outra reflexão diz respeito a esse instrumental cognitivo, atropelado, como Alquéres destaca, pela transformação tecnológica acelerada, numa escala igualmente inédita, se considerarmos a longa duração da Revolução Agrícola do Neolítico ao século XVIII e as marchas com velocidades sucessivamente aumentadas das Revoluções Industriais em 250 anos, da máquina a vapor à internet 5G, do carvão às fontes alternativas de energia do presente.
Por isso, nosso autor conclui – e certamente o acompanhamos - pela imperiosa necessidade de unir ciência e humanismo. Necessidade que transcende a força retórica, porque se trata de algo vital, aqui e agora, um tipping point, um ponto de não retorno (repetindo Lovelock) da vida coletiva e das vidas individuais. Durante muito tempo se pensou, à vista dos sucessos da ciência, que isso seria impossível, ou que a vida deveria simplesmente se submeter aos ditames científicos e aos figurinos lógicos. Tal concepção, no apogeu da arrogância cientificista, fez com que Coleridge dissesse que a poesia não era a antítese da prosa, mas da ciência, ou que Taine afirmasse a sério que as sinfonias de Beethoven eram “belas como um silogismo”.
Ao contrário, podemos pensar que beleza, elegância e mesmo a sensibilidade, traços tão evidentes da percepção humanista, são perfeitamente compatíveis com uma percepção larga da ciência. Invoco a favor desta tese, em lugar do wishful thinking de um historiador, o testemunho “de experiências feito”, diria, Camões, de três físicos:
- Einstein, afirmando que “sem a crença (sic) na harmonia interna de nosso mundo, seria impossível a ciência” (“A evolução das ideias em física”);
- Poincaré, sustentando que a busca por essa beleza especial, o sentido da harmonia do mundo, nos faz escolher os fatos mais aptos para contribuir com ela (“Ciência e método”);
- Broglie, defendendo que a profunda analogia existente entre fenômenos aparentemente distantes, dá ao espírito uma impressão de beleza e o inclina a crer que contém grande parte de verdade (“Continuidade e descontinuidade na física moderna”).
A união entre ciência e humanismo é a melhor resposta aos desafios identificados por Alquéres e se implica, para ele, numa nova ética, essa opção pressupõe renunciar à ética antropocêntrica em vigor desde o Antigo Testamento, substituindo-a por uma ética em que o estar-no-mundo é compartilhado com as demais criações da Natureza. Podemos acrescentar que tal situação somente será possível por meio de uma nova Paideia, uma outra síntese da existência com a consciência, da cultura com a educação, do material com o simbólico, tendo os olhos postos naquela Areté definida pelos gregos.